sábado, 2 de agosto de 2014

O "direito de defesa" e o nojo que me dá.

Quando me dispus a passar três meses na Palestina, eu já conhecia bastante sobre o conflito. Foram, pelo menos, dois anos de leituras dos mais diversos tipos: relatórios das Nações Unidas, livros de historiadores israelenses e palestinos, jornais, relatos, entre outros.
Eu esperava encontrar o que de fato encontrei. Uma população fortemente armada e preconceituosa, do lado israelense, e uma população amedrontada, desarmada e cansada, do lado palestino (sem generalizações, obviamente). Do lado israelense, eu via pessoas fazendo compras, correndo e levando os bebês para passear, com fuzis pendurados no pescoço, por exemplo. Do palestino, as únicas armas com que tive contato foram as de alguns poucos soldados que controlavam as “áreas D” (consideradas de total controle palestino, em que, teoricamente, os israelenses – civis e militares - não poderiam pôr o pé) e que sumiam quando os israelenses faziam suas incursões em território palestino. Em geral, os palestinos tentavam evitar falar sobre o futuro ou sobre política: “já tentamos de tudo, da resistência armada à resistência pacífica”,  “nossa vida só piorou”, “acho que um dia teremos que deixar nossa casa para trás, como fizeram todos os outros”, diziam .
Nesse curto período que estive na Cisjordânia, eu vi todo o tipo de desrespeito ao Direito Humanitário Internacional. Vi crianças serem revistadas todos os dias por soldados para ir à escola; idosos impedidos de cultivar suas terras; autoridades palestinas com acesso negado ao território ocupado e desrespeitadas por simples soldados israelenses de 20 e poucos anos; meninos de 14 anos algemados; família inteiras alvo de gás lacrimogênio e canhões de água fedida, por defenderem seu direito de ir e vir; água palestina ser transferida para abastecer somente propriedades israelenses; casas serem demolidas no próprio território palestino – quiçá por pura maldade etc. Não preciso dizer que nada disso ocorre no sentido contrário, preciso? De lado israelense, não existem confiscos de terras, casas demolidas, prisões arbitrárias ou qualquer um dos absurdos que tive o desprazer de ver com meus próprios olhos.
O horror era tanto que eu não acreditava: tinha dias que eu ficava calada no meu canto, tentando entender tudo aquilo. Como era possível?  Em três meses, vi coisas que qualquer ser humano normal duvidaria; preenchi formulários, fiz relatórios e tirei fotos dos mesmos absurdos que muitas outras pessoas antes de mim já haviam presenciado. Era impossível que ninguém soubesse o que se passava; então, passei a desconfiar que todas aquelas pessoas e entidades que não se posicionavam de forma contrária àqueles absurdos seriam cúmplices e, portanto, igualmente culpados. A ONU e todas as suas agências, os Estados Unidos, a Europa e todo o mundo é conivente com os abusos israelenses na Palestina, aquela terra sem lei, onde um faz o que quer e o outro obedece, se não quiser ir para a prisão ou para a cova. Dessa forma vive um palestino. Foi assim que compreendi as razões de alguém que se explode ou mata uma outra pessoa a facadas: é o resultado de quando tiramos a esperança da vida de qualquer ser humano.

Ver o que se passa em Gaza é revoltante e me dá nojo. Cada soldado israelense que vejo falar em “direito de defesa”, tenho náuseas, tamanha a maldade e perversidade. Pior ainda é ver que muita gente defende esse absurdo. A ocupação israelense deveria ser considerada crime contra a humanidade e todos aqueles que a defendem deveriam ir passar alguns dias (não precisa ser sequer um mês) morando com os palestinos, para sentir na pele o que passa essa gente.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Jesus e os palestinos


Perto do natal eu li uma notícia cujo título era “Se Jesus fosse vivo seria linchado por palestinos”1. Trata-se de um recado deixado na página da internet da embaixada israelense em Dublin.  Bom, nem preciso dizer que escrever sobre a Palestina é um exercício de paciência, neh? Daí eu contei até um milhão e resolvi escrever isso hoje, porque eu estava me cobrando há tempos retomar o blog e responder a esse absurdo. Primeiro vou refletir sobre o fato de Jesus ter sido judeu, e depois o fato de Jesus ter sido cristão.

Vou começar pelo básico, existem palestinos muçulmanos, cristãos, judeus, ateus, e assim por diante, como em qualquer lugar do mundo, como no Brasil!! Existem palestinos judeus? Sim, eles existem, mas, em resumo: com a criação do Estado de Israel eles ficaram dentro de Israel e não da Palestina. Isso porque com a chegada do sionismo a população judaica palestina começou a ser separada da população local que professava outras religiões. Assim, muitos passaram a ver seus vizinhos judeus como aliados do inimigo que colonizava suas terras, o que não necessariamente era verdade. Existem hoje judeus que tentam levantar o fato de que o conflito não é religioso e que a coexistência antes da criação do Estado de Israel era majoritariamente pacífica 2.

Os palestinos odeiam os judeus? Primeiro, todo muçulmano (falando sobre os palestinos muçulmanos, que são maioria) é ensinado a respeitar as religiões do livro, porque assim está escrito no Corão. Os muçulmanos seguem uma tradição que reconhece tanto o cristianismo quanto o judaísmo. Moisés e Jesus são profetas dentro do islamismo. Essa é uma consideração religiosa, mas existe também a minha experiência prática. Na Palestina existem muitos judeus, israelenses ou não, que lutam pelos direitos dos palestinos, esses judeus são vistos, num primeiro momento, com desconfiança pela população local acostumada com a dinâmica perversa da colonização israelense. Infelizmente, nada mais natural. No entanto, quando eles percebem que esses judeus os tratam como iguais, que se sentam com eles, tomam chá com eles, dividem a mesma comida, o mesmo gás lacrimogênio, esses judeus são tratados tão bem quanto todos os outros palestinos e internacionais amigos (e muito bem tratados! A hospitalidade palestina é um ponto forte da cultura local, algo que todos deveriam experienciar para saber de fato quem são essas pessoas que a maior parte do mundo classifica como terroristas).

Eu tive a oportunidade de levar dois judeus norte-americanos a cidade onde morei, uma tinha inclusive cidadania israelense. O único problema que tive foi que todos os palestinos queriam conversar com eles. Recebemos muitos convites de café e chá, porque todos queriam conversar com um judeu, muitos diziam “desde não sei quando eu não recebo um judeu na minha casa!”. Eles queriam provar que o problema não é religioso, que eles não são perigosos. Lógico, existe uma desconfiança inicial, mas com o tempo, e muito chá, ela pode e é superada. Tive o prazer de ver isso acontecer muitas vezes.

Por último eu queria dizer que eu fui para a Palestina por uma organização cristã, o que significa que eu andava pra cima e pra baixo, muitas vezes sozinha, com uma cruz no peito do colete do uniforme. Eu nunca, NUNCA, tive problemas por não ser muçulmana. Até porque existe uma grande população palestina cristã na região, principalmente em Belém3.

Tive também a sorte de passar um natal por lá. Os muçulmanos não comemoram o natal, mas por saberem que muitos de nós éramos cristãos alguns vinham nos desejar feliz natal e perguntar como nós o comemorávamos em nossos países. Eles adoravam a ideia de trocar presentes, da árvore, etc. No campo de refugiados que trabalhei muitos queriam saber sobre o natal, sobre Jesus, sobre o que acreditávamos. Eu ganhei de presente de um deles, um menino chamado Muhammad, um desenho de uma árvore de natal cheia de presentes embaixo, com os dizeres “Feliz Natal”. Quando recebi  o desenho vi que ele tinha colocado uma cruz no lugar da estrela que fica no topo da árvore. Eu agradeci e disse que havia gostado muito, principalmente porque ele havia desenhado a cruz, que não era o costume, e expliquei a história da estrela. Ele ficou sem graça, apagou e colocou a estrela no lugar da cruz. Eu queria que ele tivesse mantido o próprio desenho, só tinha dito que não usávamos a cruz na árvore porque achei que ele pudesse gostar da história. Me senti um pouco mal na hora, mas depois percebi que o gesto de apagar e desenhar aquilo que eu disse ser o correto significava, além de tudo, respeito.

Um respeito que eu vi faltar no mesmo natal, do outro lado, quando o prefeito de Nazaré (cidade que hoje fica em território israelense) resolveu proibir as árvores de natal em locais públicos, isso porque, segundo ele, Nazaré é uma cidade judia e as árvores seriam uma provocação dos árabes 4.

Bom, em resposta ao que o funcionário da embaixada israelense na Irlanda disse, o meu palpite é que Jesus seria muito bem tratado pelos palestinos, aliás, muito melhor pelos palestinos do que pelos israelenses.


1 Ver a notícia em português em:  http://noticias.gospelprime.com.br/natal-jesus-linchado-palestino-embaixada-israel-facebook/

2 Antes do início da imigração dos judeus europeus em massa para a Palestina, que teve início no final do século XIX, não existia essa hostilidade que as pessoas dizem ser milenar, ela não é milenar! Ela tem data e causas históricas que são muito mais políticas que religiosas. PS: isso não significa que não tenham existido conflitos anteriores ou que eles tivessem sempre sido melhores amigos, mas, em sua maioria, eles viveram sim em paz.

3 Inclusive o programa que participei existe por um pedido das igrejas cristãs da Terra Santa que chamaram a comunidade cristã internacional para tentar ajudar na construção de uma paz justa. Lá, nós trabalhávamos lado a lado com israelenses e palestinos, principalmente muçulmanos e cristãos, sem qualquer problema, sem qualquer hostilidade.

4Ver a notícia em português em http://www.dgabc.com.br/News/5847971/prefeito-de-cidade-perto-de-nazare-proibe-arvores-de-natal.aspx.


Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém. 

Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém. 

Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém no dia de natal. Esperam para cruzar o muro os carros de uma carreata cristã. 

Cartaz de "Feliz Natal" e "Feliz Ano Novo" do "Movimento de Libertação Nacional da Palestina" em Belém.  (24/12/2011)

Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Durante um dos dias da intifada, eu, uma jovem mulher palestina, estava grávida de quatro meses e perdi meu bebê devido ao gás lacrimogêneo israelense. Eu estava terrivelmente deprimida, era o segundo aborto espontâneo que eu sofria. Uma semana depois fui visitar um médico em Jerusalém para um check up. Saindo da clínica eu vi, bem perto, no topo de uma escada rolante, uma criança israelense brincando perigosamente, prestes a cair. Pensamentos passaram rapidamente pela minha cabeça. Deveria eu ignorar e deixa-lo morrer da mesma forma que os soldados israelenses deixaram o meu menino morrer uma semana atrás, ou eu deveria fazer uma tentativa desesperada de agarrá-lo? De repente, eu senti um impulso que me fez correr em sua direção. Me atirando em frente ao menino eu preveni a sua queda. 


Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Toda a minha vida foi em Jerusalém, eu estava lá todos os dias: eu trabalhei lá como voluntária em uma escola, e todos os meus amigos vivem lá. Eu costumava fazer parte da Igreja Anglicana em Jerusalém e eu era voluntária lá. Eu cuidava das flores e era ativa junto com as outras mulheres. Aluguei um flat, mas eu não tinha permissão para ficar porque não tenho o RG de Jerusalém. Agora eu não posso ir a Jerusalém; o muro me separa da minha igreja, da minha vida. Nós estamos aprisionados aqui em Belém. Toda a minha relação com Jerusalém está morta. Eu sou uma mulher moribunda.  


Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Eu nasci em Ein Karem, 1934. Minha avó também nasceu lá. Ein Karem é uma vila muito antiga, onde cristãos e muçulmanos costumavam viver juntos. O exército sionista chegou à aldeia em 1948 e eles estavam atirando. Nós fomos forçados a sair porque era perigoso ficar. Eu tinha 13 anos naquela época. Uma vez nós voltamos a Ein Karem para ver a vila. Nós não pudemos visitar nossa casa porque os israelenses estavam lá e eles nos impediram. Minha mãe queria ver nossa casa, nossos móveis, nossas roupas e outros pertences. Mas os israelenses não a deixaram entrar, em vez disso, eles trancaram a porta. 


Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Sou uma mulher ucraniana casada com um palestino. Numa das últimas incursões da segunda intifada os soldados israelenses juntaram todos os membros da minha família dentro de casa e ordenaram que eles se deitassem no chão. Naquela época eu estava grávida, mas eles me forçaram a deitar no chão também, junto com meus filhos. Nós tivemos que ficar no chão por quatro horas enquanto os soldados assistiam TV na nossa casa. Num certo momento um dos soldados começou a rir e a atirar doces na gente, enquanto estávamos lá deitados.  



Muro de separação em Belém com os cartazes. 


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Rito de passagem


Ele tinha 17 anos, aos 16 tinha sido preso, não ficou muito tempo, comparado com os outros. Foram 17 dias na solitária, provavelmente o tempo que ele demorou a assinar sua confissão, e mais 53 dias entre espera, acusação e pena. Mohammad era um menino que não sabia por que tinha sido preso de madrugada e mantido 20 dias sem contato com qualquer advogado, ou melhor, sabia, afinal era palestino. Sua sentença era, entre outras coisas menos graves, pertencer a Jihad Islâmica, grupo político considerado terrorista pelo governo israelense. Segundo ele, o seu único delito tinha sido entrar para um grupo de discussão sobre religião na escola onde estudava. Então era isso, ele era um terrorista, afinal, o único partido ou grupo político não considerado terrorista pelos israelenses é o Fatah, partido da Autoridade Palestina.
O menino falava muito pouco, estava tímido, segundo a mãe, que também possuía dois sobrinhos na cadeia e outro filho recém-saído, ele havia mudado depois da prisão, era finalmente um homem. Antes era muito arteiro, agora ficava mais no seu canto. De onde eu venho isso tem outro nome, trauma, pensei comigo. Mas, em um país onde quase todos os jovens passam pela cadeia1, o lugar é realmente um rito de passagem para a maioridade. A conversa começou estranha, ele não queria falar, e a única pessoa que entedia inglês, uma prima, ainda dava muitos tropeços na língua.
O que fizeram com você na cadeia? Sem me olhar nos olhos ele disse: fui interrogado durante 3 ou 4 horas ininterruptas durante os 17 dias que fiquei na solitária com uma luz que ficava acessa 24 horas e um aquecedor que nunca desligava, ameaçavam minha família. Queriam que eu confessasse ser da Jihad Islâmica, e eu nem sabia do que eles estavam falando. Depois me colocaram numa cela muito fria com mais 8 meninos, entre 15 e 17 anos.
Eu sabia que ele tinha confessado, afinal, não existia outra possibilidade, os israelenses costumam prorrogar a prisão das pessoas em casos de não confissão até que elas cedam. O sistema é o seguinte: os que confessam pagam uma fiança, geralmente de uns 3.500 reais, ganham uns dias de reclusão, e vão para casa; os que não confessam, ficam presos até confessar. A única diferença é que os que mais tempo resistem, mais tempo ficam na prisão. Não há escapatória. É por isso que eles têm um índice de quase 100% de confissão e condenação, coisas de democracia.
Perguntei se ele sabia que tinha saído uma grande reportagem na Inglaterra sobre a condição das crianças palestinas presas, onde ele era um dos entrevistados2. Mesmo? Vieram umas pessoas aqui faz um tempo, mas ninguém me disse nada, nem sei de onde eles eram, respondeu o menino. Foi uma reportagem muito boa, as pessoas ficaram indignadas, inclusive o governo inglês chegou a fazer uma declaração pública sobre o fato3, o que não é pouca coisa, falei. Ele se animou, e eu brinquei “você está famoso”, foi ai que eu finalmente vi um sorriso adolescente, ele estava orgulhoso.
Eu também fiquei orgulhosa, consegui passar um pouco de esperança para o garoto que vivia numa casa minúscula com toda a sua família num dos dois campos de refugiados da cidade de Tulkarm. Perguntei sobre a escola, acabei me metendo em um terreno complicado. Por conta da prisão ele acabou perdendo o ano e não quis voltar, pois teria que repetir a série e ficar longe dos colegas. Mas então, o que você vai fazer? Estamos tentando arrumar dinheiro, disse a mãe, porque numa escola particular ele pode fazer os dois anos de uma só vez, assim que conseguirmos o dinheiro ele volta a estudar. Olhei em volta, a casa era uma sala muito pequena, uma cozinha, um banheiro, e um único quarto, mas até que não era tão mal, eles tinham uma grande janela com vista livre, as outras casas de campo de refugiados que conheci não tinham esse luxo.

1 Todos os anos são cerca de 500 a 700 menores de idade presos pelos isralenses
2 Reportagem do “The Guardian” sobre os presos palestinos menores de idade: http://www.guardian.co.uk/world/2012/jan/22/palestinian-children-detained-jail-israel?INTCMP=SRCH

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O Difícil Retorno

Muita gente me pergunta a respeito da minha experiência na Palestina. Desde que cheguei, tenho tido muitas dificuldades em falar sobre isso. Falar dos Palestinos significa lembrar de pessoas que hoje são muito queridas e que estão sofrendo pelo simples fato de existir.  Quando me propus a ir até lá, eu sabia que quase nada eu poderia fazer para mudar os fatos, que a minha presença seria um mero paliativo; passar por esse processo, entretanto, é totalmente diferente de saber que isso ocorreria.  

Ler sobre a Palestina se tornou quase uma tortura. Jornais e revistas retratam o conflito de maneira totalmente equivocada. Primeiro, que eles mostram correspondentes estacionados em Tel Aviv, falando com propriedade do que se passa na Cisjordânia ou em Gaza1. Acontece que, morando em Tel Aviv, eles provavelmente só escutam as versões oficiais do governo israelense ou das organizações israelenses, que são, na sua maioria, totalmente enviesadas, para não dizer anti-palestinas. Seria o mesmo que colocar um repórter fixo em Gaza. Além disso, estar em Tel Aviv significa que você não tem qualquer contato com os territórios ocupados palestinos; existe não só uma barreira física entre eles2, como uma barreira psicológico. Só quem já foi à Palestina e a Israel sabe do absurdo que é ter um correspondente internacional que não transite entre as duas áreas.

Não sejam ingênuos de pensar que eles mesmos não sabem disso. Se eles não o fazem, é porque não querem mostrar a totalidade do conflito. Procure a respeito da libertação do soldado israelense Gilad Shalit, que você verá o nome dele estampado mil vezes, Enquanto os milhares de palestinos, inclusive crianças, que estavam e ainda estão em prisões israelenses,  não tem nome algum. Isso porque eles cometeram crimes bárbaros? 40% da população masculina palestina já passou pela cadeia ou segue encarcerada; nenhuma sociedade que possui um número tão grande de criminosos. Os palestinos não são diferentes nem de nós, nem dos israelenses3. Eu conheço gente que foi presa por hastear a bandeira palestina em cima de uma árvore; conheço até gente que foi presa e nem sabe o porquê (nesse caso, conheço muita gente).

Esses repórteres nunca conheceram (reparem que conhecer não significa ir lá pra dizer foi) a Palestina. Não existe a possibilidade de qualquer ser humano honesto ir à Palestina e retratar o conflito como uma guerra entre iguais, como eles fazem. Aliás, retratar o conflito como se fosse entre iguais já seria um avanço. Geralmente, esses repórteres tratam a questão como um conflito entre civilizados e incivilizados, em um cenário onde eles, os palestinos, atacaram os israelenses e, então, estes fazem uso da força para se proteger. Os palestinos lançam pedras e os israelenses se defendem com gás, armas, cães, bombas. Por que será que os palestinos lançam pedras? São malucos? Por que eles simplesmente odeiam os israelenses? Por que só os israelenses têm motivo para atacar? Pensem nisso.

E qual é o meu poder vendo todos esses absurdos? Nenhum. O máximo que eu posso fazer é escrever nesse blog, esbravejar minha raiva e minha revolta contra o Estado Israelense, contra a cobertura do conflito, etc... Que poder tenho eu? O problema que essa limitação de poder se reflete nos meus amigos que estão lá na Palestina, respirando gás lacrimogênio, tendo suas terras confiscadas, suas casas derrubadas, seus entes queridos presos, mortos. Assim a vida continuará, porque pessoas como a Nathalia não tem poder nenhum. Resta rezar, para aqueles que acreditam.


1Território palestino ocupado
2Um muro de 8 metros que não te deixa nem ver o outro lado


Esse é um vídeo feito em Kafr Qaddum. A mesma vila que eu tanto fui e acompanhei durante o meu período por lá. O cachorro do exército israelense ataca um palestino, e um outro palestino enfrenta os soldados para ajudar. Esse homem se chama Murad. Ele é uma pessoa muito querida por todos, e por esse vídeo já dá para se ter uma ideia do porquê. No final da gravação é possível ver que ele foi acabou sendo preso. A alegação era a de que Murad tinha atacado um soldado. Como as imagens são muito claras, o exército não teve como sustentar sua prisão, e ele acabou sendo liberado uma semana depois. Um caso raríssimo, uma vez 99% dos presos palestinos são condenados. Ver esse vídeo daqui do Brasil foi uma das experiências emocionais mais difíceis que eu já tive.



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"Nós escolhemos quem deve se retirar"


Por volta das nove da noite recebemos uma ligação de um dos nossos contatos dizendo que os colonos judeus do assentamento israelense de Qedumim tinham entrado com tratores nas terras palestinas de Kafr Qaddum (o próprio assentamento é construído sobre terras confiscadas de Kafr Qaddum) e haviam começado a planar a terra e a plantar oliveiras. Como era noite nos foi aconselhado que esperássemos até o dia seguinte. Antes não tivéssemos esperando. Pela manhã o pedido era para que fossemos direto para lá porque o exército havia chegado e alguns palestinos haviam sido agredidos. As próximas cenas foram das mais inacreditáveis da minha vida.

Quando chegamos ao local a situação era a seguinte: de um lado, protegendo a entrada do assentamento, estavam 20 soldados e dois seguranças particulares dos colonos israelenses, todos carregando seus M-16.  Do outro lado três palestinos estavam sentados na terra em frente aos soldados como forma de protesto, três mulheres palestinas estavam sentadas um pouco distante, e mais umas quinze pessoas incluindo internacionais e a imprensa palestina se encontravam lá para noticiar e oferecer presença protetiva para os donos da terra, todos completamente desarmados.

Depois de uns 15 minutos um homem pertencente à Autoridade Palestina chegou com os papéis que provavam a posse da terra. O soldado encarregado simplesmente lhe disse: vocês tem que entrar na justiça para provar que essa terra é de vocês, essa terra é do Estado de Israel.

Nesse meio tempo me foi dito que dois palestinos haviam sido agredidos anteriormente pelos soldados. Um homem por volta de seus 60 anos levou um golpe na cabeça, começou a sangrar e teve que ser encaminhado para o hospital. A segunda foi uma senhora de mais ou menos 70 anos. Ela foi agredida por uma soldada mulher ao tentar proteger o homem que estava apanhando do outro soldado.

Não bastasse isso, depois de mais meia hora, seis homens desceram de uma caminhonete com enxadas e picaretas. O meu pensamento foi: eu não acredito que os colonos voltaram. Pois sim, eram eles. Os palestinos começaram a gritar e os soldados foram para cima dos... palestinos! Enquanto os colonos começavam a trabalhar na terra e a plantar os soldados faziam uma barreira de isolamento para protegê-los! Sim minha gente. Os verdadeiros donos da propriedade tiveram que ficar assistindo os colonos israelenses trabalharem em suas terras com a proteção do exército.  Eu que pensava que grilagem de terra era o fim do mundo. Na Palestina nem falsificar os papéis é preciso, aqui basta só você ser judeu, acordar um dia querendo cultivar a terra dos outro e pronto! A terra é sua com o respaldo do Estado Israelense! Justiça divina é outra coisa!

Durante a encenação (digo encenação porque foi uma clara demonstração de quem tem o poder, não fazia nenhum sentido eles começarem a cultivar a terra naquele momento) o exército declarou o local onde estávamos como “área militar restrita” (ou algo como isso). Os palestinos responderam que só sairiam se os colonos também saíssem. A resposta foi: nós escolhemos quem deve se retirar. 

No momento da chegada. Essa indivídua da esquerda foi a responsável pela agressão a uma senhora de seus 70 anos. 

Marcas do trator. Acima se vê que foi aberto um pedaço da cerca para sua passagem.


Três mulheres da vila de Kafr Qaddum protestam sentadas sobre suas terras. Uma delas foi agredida no braço. 

Um dos homens da vila de Kafr Qaddum protesta em frente aos soldados israelenses. 

Colonos israelenses chagam ao cenário já tenso. Eles carregam ferramentas agrícolas. É possível perceber que eles organizam sua entrada antes de realmente "aparecer" para os palestinos. 

Depois de articular sua entrada eles começam a caminhar para o lugar onde os palestinos protestavam.

Reparem que os colonos já estão no canto à esquerda. Os homens de fuzil e trajes civis são seus "seguranças particulares". E os outros de uniforme verde-oliva são os seus "seguranças" pagos pelo estado. Eles formam uma barreira para impedir que os palestinos se aproximem dos colonos israelenses. 

Os colonos israelenses e seus seguranças particulares. É possível ver as marcas de trator no chão. 


Os seguranças se posicionam para garantir o cultivo tranquilo dos colonos em terra palestina. 

Neste momentos eles já estão mais afastados dos palestinos e dos soldados. 

A seta aponta para onde os colonos estão. Reparem que em seguida estão seus seguranças, e logo depois os soldados que fazem uma barreira para impedir que os palestinos avancem.

E os colonos cultivam tranquilamente a terra alheia. Um fato curioso é que eles plantaram algumas oliveiras. Ao que tudo indica o azeite de oliva terá o mesmo destino do hummus e do faláfel. Para saber mais: http://electronicintifada.net/blogs/ali-abunimah/hummus-and-falafel-are-already-israeli-now-theyre-coming-palestines-olive-oil-too


Todo o episódio foi filmado e fotografado pelos soldados israelenses. Só para vocês não esquecerem que a senhorita à esquerda foi a que agrediu uma senhora de idade para ser sua avó.


Aqui se vê mais claramente a distinção entre os soldados e os seguranças dos colonos israelenses, de trajes civis.

Momento em que outros palestinos e internacionais se juntam ao protesto e sentam-se na terra em frente aos soldados. À direita a imprensa palestina. 

Palestinos protestam sentados em frente aos soldados israelenses. 

Momento em que os palestinos apresentam os papéis que comprovam a posse da terra e o soldado lhes diz que eles devem agora entrar na justiça para comprovar o que já está escrito. Segundo ele "essa terra é do Estado de Israel".

E a filmagem continua... Algumas vezes essas filmagens são usadas para incriminar os palestinos ou simplesmente para treinar os próximos soldados em como agir (ou não) em situações que envolvam colonos. 





quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quando a morte não é o fim, é a continuidade.


Passeando alegremente pelas ruas de Nablus em busca do meu primeiro knafe (doce típico dessa região da Cisjordânia) tive meus devaneios açucarados perturbados por uma foto antiga, num pôster novo e bastante grande. Olhei para um dos palestinos que trabalha conosco, e perguntei se o homem na foto havia sido solto na troca de prisioneiros pelo soldado israelense Gilad Shalit. Ele respondeu:

- Não, esse é um mártir que foi liberado em agosto.

- Como assim?

- Hafiz Abu Zant morreu em combate em 1976, mas seu corpo foi recolhido e mantido pelos israelenses até agora (Ago. 2011).

Demorei bastante para entender o que me havia sido dito. Não passava pela minha cabeça a ideia de manter os corpos das pessoas. Ingenuidade a minha pensar que morreu está morrido, acabou. Fiquei tão impressionada que comecei a pesquisar.

Bom, a história é a seguinte, o governo israelense se dá o direito1 de manter os corpos daqueles indivíduos que eles consideram “terroristas”2. Tanto aqueles que foram mortos em combate ou emboscada, quanto os que morreram durante o cumprimento de sua pena, ou seja, morreram na prisão. Estes são enterrados nos tais “cemitérios de números” que ficam dentro do território israelense e são inacessíveis a qualquer pessoa, seja ela da família ou não. Só alguns militares israelenses tem acesso aos registros que mostram qual número corresponde a tal pessoa. Lá os corpos estão enterrados a apenas 50 cm da superfície e, pelos relatos que tive acesso, parece que não existe nenhum cuidado contínuo. Inclusive um dos dois únicos corpos liberados até hoje (o outro foi Hafiz Abu Zant, citado acima), Mashour Talab Saleh, precisou passar por uma longa triagem de DNA para separá-lo dos demais corpos que estavam misturados na mesma cova.  

Até o dia 15 de janeiro de 2011 de acordo com o coordenador da campanha para a devolução dos corpos, 345 corpos estão em poder dos israelenses. Dentre eles 24 são cidadãos jordanianos, 2 são marroquinos, e os outros são todos palestinos e palestinas (pude contar no material que me foi dado oito mulheres).

O meu ponto aqui não é discutir quem é terrorista ou não. Porque não é essa a questão, a questão é: o indivíduo morreu, quem sofre com a falta do corpo é a família. Que culpa tem a família nessa história? Porque prolongar o sofrimento das pessoas por anos? Ainda mais numa situação tão tensa como essa? Eu com meus bons sentimentos não consigo entender essas coisas. Aliás, racionalmente eu entendo que eles queiram punir as famílias pelo que os seus filhos fizeram, mas pra mim existe limite moral, não aceito3.


1 O mantenimento dos corpos e a forma como eles são mantidos pelo governo israelense violam algumas convenções internacionais como por exemplo: Conveção de Haia de 1907; 1ª Convenção de Genebra de 1949: artigo 15, artigo 17; 2ª Convenção de Genebra de 1949; 3ª Convenção de Genebra de 1949; 4ª convenção de Genebra de 1949; Primeiro Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional: artigo 34; Segundo Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional.

2 Não vou entrar no mérito do que é considerado terrorista ou não pelo governo israelense porque qualquer palestino lutando ou pensando em lutar é considerado terrorista por eles, mesmo que seja defendendo seus próprios direitos. Vale lembrar que muitos dos que lutaram por Israel e mataram pessoas são considerados heróis e enterrados com horarias.



Knafe, delícia maravilhosa!

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Abdul Fattah Mohammed Ali Badeer, de Tulkarm. Morto em 1975 perto de Jericó, sua mãe morreu no final de 2011 sem concretizar o sonho de enterrar o próprio filho.





terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O desafio de plantar e colher na Palestina.


A região de Tulkarem é bastante fértil, por aqui são incontáveis as plantações de oliveiras, laranjas, tangerinas e estufas para a produção de frutas, verduras e legumes de diversos tipos (Não! Não tem nada deserto por aqui! O clima é mediterrâneo). Muitos dos habitantes dessa parte da Palestina vivem da produção de suas terras, aqui não existem supermercados (pelo menos nessa região que estou), mas os pequenos mercados e feiras, bastante parecidas com as que temos no Brasil, funcionam a todo vapor todos os dias da semana. 

Como tudo na vida de um palestino é mais difícil, também é difícil plantar e colher em algumas situações. Por exemplo: se a pessoa não teve sua terra confiscada para a construção de algum assentamento judeu, ou para a construção do famoso muro (o que é a pior das possibilidades, porque você não verá mais nem a terra nem qualquer dinheiro por ela), ela pode ter terras próximas a esses assentamentos ou bases militares israelenses. Nesses casos são duas as dificuldades: a primeira são os próprios colonos que não raramente atacam as pessoas, cortam e/ou colocam fogo nas plantações e nas propriedades das redondezas; a segunda dificuldade são os soldados, que para “proteger os colonos”, amedrontam os palestinos, chegando até a prendê-los vez ou outra para que eles desistam de tentar cultivar aquele pedaço de terra próximo a esses locais. Isso também acontece porque Israel se utiliza de uma lei otomana de 1858 para confiscar essas terras. A lei que me refiro diz que toda terra não cultivada passa a pertencer ao Estado. 

Outra dificuldade bastante comum aqui na região que estou são as terras que ficaram entre a linha verde e o muro (essa área é chamada de Seam Zone). A linha verde que seria a fronteira entre o Estado de Israel e o Estado Palestino é ignorada pelo governo israelense, mas reconhecida por 126 dos 196 países membros das Nações Unidas (inclusive o Brasil). Cerca de 9,4% da Cisjordânia1 se encontra nessa situação. 25.000 palestinos vivem entre o muro e a linha verde, o que significa que alguns estão completamente isolados de suas vilas. Nesses casos é preciso permissão para receber visitas (já que elas necessariamente precisarão passar pelo portão) e até mesmo para sair de casa e voltar.

Um dos trabalhos que fazemos aqui é monitorar alguns desses portões agrícolas que permitem que os fazendeiros acessem suas terras no Seam Zone. Esses portões podem ser de três tipos: o diário que abre três vezes ao dia todos os dias da semana (os horários de abertura e a duração que o portão permanece aberto variam de portão para portão, mas o mínimo é 15 min. e o máx. é de uma hora); o sazonal que abre diariamente durante o período de colheita das azeitonas (do final de outro ao final de novembro); e o sazonal semanal que abre somente de uma a três vezes na semana, três vezes ao dia, somente durante o período de colheita. Para acessar essas terras não basta somente ser dono da propriedade ou ser contratado para trabalhar nela, primeiro é preciso preencher um formulário comprovando o seu status e esperar a permissão do governo israelense para cruzar o portão.

De acordo com o órgão palestino responsável por negociar com os israelenses a respeito das permissões, este ano de 2011, do dia 1º de novembro até o dia 13 de dezembro, foram solicitadas 6535 permissões aqui em Tulkarm, das quais foram concedidas somente 3312, ou seja, cerca da metade dos pedidos são recusados. Segundo o escritório palestino para assuntos civis, as pessoas que só trabalham mas não são os donos da terra, tem dificuldades com as permissões, da mesma maneira que aquelas que possuem propriedade em conjunto com outras pessoas. Nesse caso é preciso que somente um dos donos se responsabilize pela terra, e é somente essa pessoa que poderá ter acesso à propriedade, o restante dos donos são impedidos de passar pelo portão. Só para lembrar a vocês que o muro, que é ilegal de acordo com a Corte Internacional de Justiça, separa terras palestinas de terras palestinas.

- o problema não é exatamente o portão, o problema é a liberdade. Antes eu vinha com a minha família fazer piquenique, convidava os amigos para passar o fim de semana. Agora não posso mais fazer nada, nem convidar ninguém para tomar um chá ou café.  (Jalal nos disse isso após tentar insistentemente convencer os soldados israelenses a nos deixar passar. Ele ficou extremamente chateado quando o comandante impediu que visitássemos sua plantação).

1 Constituem a Palestina os territórios de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.

Feira em Tulkarm

Feira em Tulkarm

Portão agrícola.

Portão agrícola

Soldado israelense alisa a terra depois de fechar o portão. Eles fazem isso para ter certeza que ninguém passou por ali depois dos soldados terem ido embora. Os portões são abertos por no máximo uma hora, depois de fechados eles só serão abertos novamente na hora do almoço.

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Atrás da cerca se vê as terras que estão no Seam Zone. Os tetos brancos são estufas. 

Estufa com plantação de pimenta.