quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quando a morte não é o fim, é a continuidade.


Passeando alegremente pelas ruas de Nablus em busca do meu primeiro knafe (doce típico dessa região da Cisjordânia) tive meus devaneios açucarados perturbados por uma foto antiga, num pôster novo e bastante grande. Olhei para um dos palestinos que trabalha conosco, e perguntei se o homem na foto havia sido solto na troca de prisioneiros pelo soldado israelense Gilad Shalit. Ele respondeu:

- Não, esse é um mártir que foi liberado em agosto.

- Como assim?

- Hafiz Abu Zant morreu em combate em 1976, mas seu corpo foi recolhido e mantido pelos israelenses até agora (Ago. 2011).

Demorei bastante para entender o que me havia sido dito. Não passava pela minha cabeça a ideia de manter os corpos das pessoas. Ingenuidade a minha pensar que morreu está morrido, acabou. Fiquei tão impressionada que comecei a pesquisar.

Bom, a história é a seguinte, o governo israelense se dá o direito1 de manter os corpos daqueles indivíduos que eles consideram “terroristas”2. Tanto aqueles que foram mortos em combate ou emboscada, quanto os que morreram durante o cumprimento de sua pena, ou seja, morreram na prisão. Estes são enterrados nos tais “cemitérios de números” que ficam dentro do território israelense e são inacessíveis a qualquer pessoa, seja ela da família ou não. Só alguns militares israelenses tem acesso aos registros que mostram qual número corresponde a tal pessoa. Lá os corpos estão enterrados a apenas 50 cm da superfície e, pelos relatos que tive acesso, parece que não existe nenhum cuidado contínuo. Inclusive um dos dois únicos corpos liberados até hoje (o outro foi Hafiz Abu Zant, citado acima), Mashour Talab Saleh, precisou passar por uma longa triagem de DNA para separá-lo dos demais corpos que estavam misturados na mesma cova.  

Até o dia 15 de janeiro de 2011 de acordo com o coordenador da campanha para a devolução dos corpos, 345 corpos estão em poder dos israelenses. Dentre eles 24 são cidadãos jordanianos, 2 são marroquinos, e os outros são todos palestinos e palestinas (pude contar no material que me foi dado oito mulheres).

O meu ponto aqui não é discutir quem é terrorista ou não. Porque não é essa a questão, a questão é: o indivíduo morreu, quem sofre com a falta do corpo é a família. Que culpa tem a família nessa história? Porque prolongar o sofrimento das pessoas por anos? Ainda mais numa situação tão tensa como essa? Eu com meus bons sentimentos não consigo entender essas coisas. Aliás, racionalmente eu entendo que eles queiram punir as famílias pelo que os seus filhos fizeram, mas pra mim existe limite moral, não aceito3.


1 O mantenimento dos corpos e a forma como eles são mantidos pelo governo israelense violam algumas convenções internacionais como por exemplo: Conveção de Haia de 1907; 1ª Convenção de Genebra de 1949: artigo 15, artigo 17; 2ª Convenção de Genebra de 1949; 3ª Convenção de Genebra de 1949; 4ª convenção de Genebra de 1949; Primeiro Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional: artigo 34; Segundo Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional.

2 Não vou entrar no mérito do que é considerado terrorista ou não pelo governo israelense porque qualquer palestino lutando ou pensando em lutar é considerado terrorista por eles, mesmo que seja defendendo seus próprios direitos. Vale lembrar que muitos dos que lutaram por Israel e mataram pessoas são considerados heróis e enterrados com horarias.



Knafe, delícia maravilhosa!

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.  

Abdul Fattah Mohammed Ali Badeer, de Tulkarm. Morto em 1975 perto de Jericó, sua mãe morreu no final de 2011 sem concretizar o sonho de enterrar o próprio filho.





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