Passeando alegremente pelas ruas de
Nablus em busca do meu primeiro knafe (doce típico dessa região da
Cisjordânia) tive meus devaneios açucarados perturbados por uma
foto antiga, num pôster novo e bastante grande. Olhei para um
dos palestinos que trabalha conosco, e perguntei se o homem na foto
havia sido solto na troca de prisioneiros pelo soldado israelense
Gilad Shalit. Ele respondeu:
- Não, esse é um mártir que foi
liberado em agosto.
- Como assim?
- Hafiz Abu Zant morreu em combate
em 1976, mas seu corpo foi recolhido e mantido pelos israelenses até
agora (Ago. 2011).
Demorei bastante para entender o que
me havia sido dito. Não passava pela minha cabeça a ideia de manter
os corpos das pessoas. Ingenuidade a minha pensar que morreu está
morrido, acabou. Fiquei tão impressionada que comecei a pesquisar.
Bom, a história é a seguinte, o
governo israelense se dá o direito1
de manter os corpos daqueles indivíduos que eles consideram
“terroristas”2.
Tanto aqueles que foram mortos em combate ou emboscada, quanto os que
morreram durante o cumprimento de sua pena, ou seja, morreram na
prisão. Estes são enterrados nos tais “cemitérios de números”
que ficam dentro do território israelense e são inacessíveis a
qualquer pessoa, seja ela da família ou não. Só alguns militares
israelenses tem acesso aos registros que mostram qual número
corresponde a tal pessoa. Lá os corpos estão enterrados a apenas 50
cm da superfície e, pelos relatos que tive acesso, parece que não
existe nenhum cuidado contínuo. Inclusive um dos dois únicos corpos
liberados até hoje (o outro foi Hafiz Abu Zant, citado acima),
Mashour Talab Saleh, precisou passar por uma longa triagem de DNA
para separá-lo dos demais corpos que estavam misturados na mesma
cova.
Até o dia 15 de janeiro de 2011 de
acordo com o coordenador da campanha para a devolução dos corpos,
345 corpos estão em poder dos israelenses. Dentre eles 24 são
cidadãos jordanianos, 2 são marroquinos, e os outros são todos
palestinos e palestinas (pude contar no material que me foi dado oito
mulheres).
O meu ponto aqui não é discutir
quem é terrorista ou não. Porque não é essa a questão, a questão
é: o indivíduo morreu, quem sofre com a falta do corpo é a
família. Que culpa tem a família nessa história? Porque prolongar
o sofrimento das pessoas por anos? Ainda mais numa situação tão
tensa como essa? Eu com meus bons sentimentos não consigo entender
essas coisas. Aliás, racionalmente eu entendo que eles queiram punir
as famílias pelo que os seus filhos fizeram, mas pra mim existe
limite moral, não aceito3.
1
O mantenimento dos corpos e a forma como eles são mantidos pelo governo israelense violam
algumas convenções internacionais como por exemplo: Conveção de
Haia de 1907; 1ª Convenção de Genebra de 1949: artigo 15, artigo
17; 2ª Convenção de Genebra de 1949; 3ª Convenção de Genebra
de 1949; 4ª convenção de Genebra de 1949; Primeiro Protocolo
Adicional da Cruz Vermelha Internacional: artigo 34; Segundo
Protocolo Adicional da Cruz Vermelha Internacional.
2
Não vou entrar no mérito do que é considerado terrorista ou não
pelo governo israelense porque qualquer palestino lutando ou
pensando em lutar é considerado terrorista por eles, mesmo que seja
defendendo seus próprios direitos. Vale lembrar que muitos dos que
lutaram por Israel e mataram pessoas são considerados heróis e
enterrados com horarias.
3
Para saber mais sobre a campanha: http://www.mosaada.org/index.php?page=inside&pid=24§ionid=4&parentId=0
Knafe, delícia maravilhosa!
Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.
Enterro simbólico de Hafiz Abu Zant em Nablus, agosto 2011.
Abdul Fattah Mohammed Ali Badeer, de Tulkarm. Morto em 1975 perto de Jericó, sua mãe morreu no final de 2011 sem concretizar o sonho de enterrar o próprio filho.
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