Perto do
natal eu li uma notícia cujo título era “Se Jesus fosse vivo
seria linchado por palestinos”1. Trata-se de um recado deixado na página da internet da embaixada
israelense em Dublin. Bom, nem preciso dizer que escrever sobre a
Palestina é um exercício de paciência, neh? Daí eu contei até um
milhão e resolvi escrever isso hoje, porque eu estava me cobrando há
tempos retomar o blog e responder a esse absurdo. Primeiro vou
refletir sobre o fato de Jesus ter sido judeu, e depois o fato de
Jesus ter sido cristão.
Vou
começar pelo básico, existem palestinos muçulmanos, cristãos,
judeus, ateus, e assim por diante, como em qualquer lugar do mundo,
como no Brasil!! Existem palestinos judeus? Sim, eles existem, mas,
em resumo: com a criação do Estado de Israel eles ficaram dentro de
Israel e não da Palestina. Isso porque com a chegada do sionismo a
população judaica palestina começou a ser separada da população local que professava outras religiões. Assim, muitos passaram a ver seus vizinhos judeus como aliados do inimigo que colonizava suas
terras, o que não necessariamente era verdade. Existem hoje judeus que tentam levantar o fato de que o
conflito não é religioso e que a coexistência antes da criação
do Estado de Israel era majoritariamente pacífica 2.
Os
palestinos odeiam os judeus? Primeiro, todo muçulmano (falando sobre os palestinos muçulmanos, que são maioria) é ensinado a
respeitar as religiões do livro, porque assim está escrito no
Corão. Os muçulmanos seguem uma tradição que reconhece tanto o
cristianismo quanto o judaísmo. Moisés e Jesus são
profetas dentro do islamismo. Essa é uma consideração religiosa,
mas existe também a minha experiência prática. Na Palestina
existem muitos judeus, israelenses ou não, que lutam pelos direitos
dos palestinos, esses judeus são vistos, num primeiro momento, com
desconfiança pela população local acostumada com a dinâmica
perversa da colonização israelense. Infelizmente, nada mais natural. No entanto,
quando eles percebem que esses judeus os tratam como iguais, que se
sentam com eles, tomam chá com eles, dividem a mesma comida, o mesmo
gás lacrimogênio, esses judeus são tratados tão bem quanto
todos os outros palestinos e internacionais amigos (e muito bem
tratados! A hospitalidade palestina é um ponto forte da cultura
local, algo que todos deveriam experienciar para saber de fato quem
são essas pessoas que a maior parte do mundo classifica como
terroristas).
Eu tive a
oportunidade de levar dois judeus norte-americanos a cidade onde morei, uma
tinha inclusive cidadania israelense. O único problema que tive foi
que todos os palestinos queriam conversar com eles. Recebemos muitos
convites de café e chá, porque todos queriam conversar com um judeu,
muitos diziam “desde não sei quando eu não recebo um judeu na
minha casa!”. Eles queriam provar que o problema não é religioso,
que eles não são perigosos. Lógico, existe
uma desconfiança inicial, mas com o tempo, e muito chá, ela pode e
é superada. Tive o prazer de ver isso acontecer muitas vezes.
Por último
eu queria dizer que eu fui para a Palestina por uma organização
cristã, o que significa que eu andava pra cima e pra baixo, muitas
vezes sozinha, com uma cruz no peito do colete do uniforme. Eu nunca,
NUNCA, tive problemas por não ser muçulmana. Até porque existe uma grande população palestina
cristã na região, principalmente em Belém3.
Tive também a sorte de passar um natal por lá. Os muçulmanos não
comemoram o natal, mas por saberem que muitos de nós éramos cristãos alguns vinham nos desejar feliz natal e perguntar como nós o comemorávamos
em nossos países. Eles adoravam a ideia de trocar presentes, da
árvore, etc. No campo de refugiados que trabalhei muitos queriam saber sobre o natal, sobre Jesus, sobre o que acreditávamos. Eu ganhei de presente de um deles, um menino chamado Muhammad, um
desenho de uma árvore de natal cheia de presentes embaixo, com os
dizeres “Feliz Natal”. Quando recebi o desenho vi que ele
tinha colocado uma cruz no lugar da estrela que fica no topo da
árvore. Eu agradeci e disse que havia gostado muito, principalmente
porque ele havia desenhado a cruz, que não era o costume, e
expliquei a história da estrela. Ele ficou sem graça, apagou e
colocou a estrela no lugar da cruz. Eu queria que ele tivesse mantido
o próprio desenho, só tinha dito que não usávamos a cruz na
árvore porque achei que ele pudesse gostar da história. Me senti um pouco mal na hora, mas
depois percebi que o gesto de apagar e desenhar aquilo que eu disse
ser o correto significava, além de tudo, respeito.
Um
respeito que eu vi faltar no mesmo natal, do outro lado, quando o prefeito de Nazaré (cidade que hoje fica em
território israelense) resolveu proibir as árvores de natal em
locais públicos, isso porque, segundo ele, Nazaré é uma cidade
judia e as árvores seriam uma provocação dos árabes 4.
Bom, em
resposta ao que o funcionário da embaixada israelense na Irlanda
disse, o meu palpite é que Jesus seria muito bem tratado pelos
palestinos, aliás, muito melhor pelos palestinos do que pelos
israelenses.
1
Ver a notícia em português em: http://noticias.gospelprime.com.br/natal-jesus-linchado-palestino-embaixada-israel-facebook/
2 Antes
do início da imigração dos judeus europeus em massa para a
Palestina, que teve início no final do século XIX, não existia
essa hostilidade que as pessoas dizem ser milenar, ela não é
milenar! Ela tem data e causas históricas que são muito mais
políticas que religiosas. PS: isso não significa que não tenham
existido conflitos anteriores ou que eles tivessem sempre sido
melhores amigos, mas, em sua maioria, eles viveram sim em paz.
3 Inclusive o programa que participei existe por um pedido das igrejas cristãs da Terra Santa que chamaram a comunidade cristã internacional para tentar ajudar na construção de uma paz justa. Lá, nós trabalhávamos lado a lado com israelenses e palestinos, principalmente muçulmanos e cristãos, sem qualquer problema, sem qualquer hostilidade.
4Ver a notícia em português em http://www.dgabc.com.br/News/5847971/prefeito-de-cidade-perto-de-nazare-proibe-arvores-de-natal.aspx.
Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém.
Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém.
Muro de separação construído pelos israelenses visto da cidade de Belém no dia de natal. Esperam para cruzar o muro os carros de uma carreata cristã.
Cartaz de "Feliz Natal" e "Feliz Ano Novo" do "Movimento de Libertação Nacional da Palestina" em Belém. (24/12/2011)
Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Durante um dos dias da intifada, eu, uma jovem mulher
palestina, estava grávida de quatro meses e perdi meu bebê devido ao gás
lacrimogêneo israelense. Eu estava terrivelmente deprimida, era o segundo
aborto espontâneo que eu sofria. Uma semana depois fui visitar um médico em
Jerusalém para um check up. Saindo da clínica eu vi, bem perto, no topo de uma
escada rolante, uma criança israelense brincando perigosamente, prestes a cair.
Pensamentos passaram rapidamente pela minha cabeça. Deveria eu ignorar e deixa-lo
morrer da mesma forma que os soldados israelenses deixaram o meu menino morrer
uma semana atrás, ou eu deveria fazer uma tentativa desesperada de agarrá-lo?
De repente, eu senti um impulso que me fez correr em sua direção. Me atirando
em frente ao menino eu preveni a sua queda.
Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Toda a minha vida foi em Jerusalém, eu estava lá todos os
dias: eu trabalhei lá como voluntária em uma escola, e todos os meus amigos
vivem lá. Eu costumava fazer parte da Igreja Anglicana em Jerusalém e eu era
voluntária lá. Eu cuidava das flores e era ativa junto com as outras mulheres. Aluguei um flat, mas eu não tinha permissão para ficar porque não tenho o RG de Jerusalém. Agora eu não posso ir a Jerusalém; o muro me separa da minha
igreja, da minha vida. Nós estamos aprisionados aqui em Belém. Toda a minha
relação com Jerusalém está morta. Eu sou uma mulher moribunda.
Cartaz colocado no muro de separação em Belém com relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Eu nasci em Ein Karem, 1934. Minha avó também nasceu lá. Ein
Karem é uma vila muito antiga, onde cristãos e muçulmanos costumavam viver
juntos. O exército sionista chegou à aldeia em 1948 e eles estavam atirando.
Nós fomos forçados a sair porque era perigoso ficar. Eu tinha 13 anos naquela época.
Uma vez nós voltamos a Ein Karem para ver a vila. Nós não pudemos visitar nossa
casa porque os israelenses estavam lá e eles nos impediram. Minha mãe queria ver nossa casa,
nossos móveis, nossas roupas e outros pertences. Mas os israelenses não a
deixaram entrar, em vez disso, eles trancaram a porta.
Cartaz colocado no muro de separação em Belém com
relatos dos moradores de Belém ou arredores. Diz no cartaz: Sou uma mulher ucraniana casada com um palestino.
Numa das últimas incursões da segunda intifada os soldados israelenses juntaram
todos os membros da minha família dentro de casa e ordenaram que eles se
deitassem no chão. Naquela época eu estava grávida, mas eles me forçaram a
deitar no chão também, junto com meus filhos. Nós tivemos que ficar no chão por
quatro horas enquanto os soldados assistiam TV na nossa casa. Num certo
momento um dos soldados começou a rir e a atirar doces na gente, enquanto
estávamos lá deitados.
Muro de separação em Belém com os cartazes.